sexta-feira, 2 de março de 2007

Mangue beat. Manguebeat. Manguebit.

O texto abaixo foi publicado na coluna do Silvio Meira no dia 02 de fevereiro, em homenagem aos 10 anos da morte de Chico Science (http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7421,00.html).

Mangue beat. Manguebeat. Manguebit.

O movimento mangue mudou a história da música e da expressão artística no Recife nos anos 90. E foi essencial na criação da atitude que resultou no Porto Digital, o sistema local de inovação de tecnologia de informação do Recife.

Dois de fevereiro é dia de Iemanjá. É meu aniversário, também. E foi num domingo, no dia em que Chico Science estava indo de Recife a Olinda, naquele fim de tarde de sol em 1997, pra ver a Cabralada tocar. Esperamos, esperamos, o maracatu era energia pura, a Treze de Maio lotada, mas Chico nunca chegou. Chico nunca chegou e, no fim da noite, eu estava no necrotério, com Sonaly Macedo, onde Chico tinha ido parar depois de um acidente inacreditável no Salgadinho. Foi o pior aniversário da minha vida.

O povo do mangue, nome de beat tão interessante quanto a batida propriamente dita, renovou a cena musical do Recife e de boa parte do Brasil como se fosse um big bang. Chico, 04, Mabuse, Renato L, Lúcio Maia e tantos outros teóricos e práticos do movimento botaram nossas vidas de ouvido pra baixo. A trilha de quase tudo, aqui, era de repente daqui mesmo e pra mim, que começava a entender o encanto de alfaias, abês e loas dos maracatus de baque virado, o beat do mangue era como se fosse meu. E não era só eu, muito mais gente tava na mesma onda, atitude, jeito de enxergar o mundo, de misturar as idéias, de achar que muito, muito mais era possível.

Dois anos antes daquela tarde de maracatu em Olinda, virei professor titular do Centro de Informática da UFPE, numa cerimônia tradicionalmente precedida por um conjunto de câmera executando Bach, Mozart e similares. Pois pra mim foi Júlio Glasner no som, detonando Computadores fazem Arte (artistas, como dizia Chico, fazem dinheiro) quando entrei no auditório e Da Lama ao Caos depois do discurso de posse e antes da cana que durou dois dias... Tudo de acordo com a letra: “...eu me organizando posso desorganizar/ ...eu desorganizando posso me organizar”.

Nosso lema na informática da UFPE era e ainda é Ciência & Gréia. Ou Competência com Irreverência. Dá no mesmo. No começo da década de 90 nós também estávamos achando que não só era preciso mudar, mas que era possível mudar. O caldo de cultura que se pensava, via e ouvia no delta do Capibaribe, principalmente depois que o movimento mangue começou a tormar forma e nós começamos a nos ver nele e como parte dele, era a base de onde muitos de nós tiramos idéias e energia para começar uma aventura de tecnologias da informação que continua sendo construída, como a mesma força de antes, até hoje. E que não dá sinais de voltar atrás.

Recife sempre teve empresas de software. Sempre, aqui, significa desde a década de 60, quando a maioria dos leitores não tinha nascido e eu ainda jogava bolinha de gude. E tinha empresas porque havia uma demanda regional sofisticada e capaz de sustentar empresas locais que viriam a ter caráter nacional décadas depois. Mas a globalização começou a pegar a periferia com todo seu poder de destruição e renovação, bem no tempo do movimento mangue, na década de 90. Foi o fim dos bancos locais e regionais, a falência das pequenas indústrias, o fim dos incentivos da Sudene. Enfim, o fim de muitos sonhos, planos e projetos.

E os acadêmicos de Recife tinham sonhos, planos de construir centros de ensino e pesquisa que contribuíssem para o crescimento da economia local, para a geração de emprego tecnológico, para a criação de novas empresas. Mas a globalização tirava nosso tapete a cada dia e os alunos que formávamos tomavam o rumo do Rio, São Paulo, Seattle e Londres. Foi aí, nesta mesma época, que o povo da tecnologia, tanto os mais novos quando os mais velhos do que Chico, resolveram mudar o jogo. Se Chico fazia para o mundo, por que não nós, também?

Se a economia local -- que demandava uma informática local -- estava desaparecendo em suas formas clássicas, porque não apostar em uma informática de classe mundial, feita aqui mas para o mundo, atraindo para cá problemas complexos e criando demandas locais que poderiam não só manter muitos dos nossos melhores cérebros aqui mas, ao mesmo tempo, atrair gente de fora pra cá, como tanta gente que estava sendo tragada pra Recife por causa, exatamente, do mangue beat? Se nosso mangue “bit” fizesse o mesmo, poderíamos, com o tempo -- quem sabe?- - tornarmo-nos muito mais relevantes...

A partir do começo dos anos 90, Recife atraiu o Softex (programa nacional de software), a RNP (Rede Nacional de Pesquisa), vários programas de pesquisa cooperativa em TICs nas universidades, as empresas de software se fortaleceram e aumentaram em número, suas associações se tornaram mais sólidas, o C.E.S.A.R (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife) apareceu, gerando (hoje) mais de 600 empregos em TICs e atuando diretamente na criação ou renovação de mais de trinta empreendimentos. Em 2000, o esforço desembocou no Porto Digital, sistema local de inovação situado no antigo bairro do Recife, o mesmo do Bar Fogão onde o povo do mangue bebia sempre.

O Fogão desapareceu. Mas cento e tantas empresas de software e de sua cadeia de valor vieram para o Porto Digital, trazendo mais de três mil pessoas que tornam vivo, de dia, o bairro que só existia à noite, quando os caranguejos com cérebro faziam uma festa em algum lugar.

O mangue não é mais o mesmo. A batida ideal que Chico procurava gerou muitas batidas possíveis, de Otto a Silvério a Cordel a Mombojó a Carfax, entre muitas outras. A busca de Chico fez renascer os maracatus, base de muitas de suas batidas, que estavam mais prá lá do que prá cá antes dele. Hoje há muitas dezenas de batuques ativos, formados depois que as alfaias -os pesados tambores de madeira do Nação Zumbi- ganharam o status dado pelo mangue. É como se um pedaço da África tivesse, de novo, desembarcado aqui, cheio de esperança, seus tambores embalados de alma e vida.

Para nós, de tecnologia, foi e é o mesmo. Aprendemos com Chico e o povo do mangue que é possível conceber, criar e fazer aqui. E levar tudo, pro mundo, a partir daqui. Estamos e vamos continuar fazendo isso. Com parabólicas e fibras óticas apontadas para o mundo, os pés no mangue, na periferia, na história da qual não podemos e não queremos fugir, fazemos do e no Recife o liquidificador de coisas ao qual nada é imune. Entra dia, sai ano, haverá alguém escrevendo um manifesto. Outro alguém atrás de mais uma batida ideal. Outros escrevendo software, gente fazendo design e interfaces, uns tantos testando, outros criando robôs, fazendo circuitos integrados, celulares, o que vier.

Ainda acho que não é uma boa idéia lembrar a morte pra comemorar vidas. Mas assim manda a tradição. Prefiro comemorar aniversários, como se estivéssemos todos vivos. Como Chico está. Na Cabralada, domingo passado, depois do ensaio, o batuque continuou tocando bases do CSNZ de 1994. Mas não é só: mais do que na música, o legado de Chico vive em todos os que lutam, nas suas muitas periferias, para fazer muito mais do que os poucos centros do mundo dizem que eles deveriam se limitar a fazer. Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi!...

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