quarta-feira, 28 de março de 2007

Fragmentos de uma viagem - Samuel II

"Eu fui ao show e eu não sei se foi impressão, mas Chico olhou só pra mim o show inteiro. As meninas também. Eu não sei se é porque eu acendi um trambolho grandão assim, jamaicano (trambolhão assim, durou o show inteiro) ou se era por causa da touca. Fez sucesso aquela touca, viu? As meninas tudo pegando na touca, "joga pra mim, joga pra mim", brincando comigo. Sabe touca de assaltante? Aquela assim, que só fica o olho de fora? Pronto! Era preta e tinha um troço assim na frente. Um amigo meu roubou o banco do brasil aqui, fugiu pra são paulo e deu pra mim. Mas aquilo fez um sucesso, Chico olhou pra mim o show inteirinho". (Samuel, 32 anos, taxista)

by Clarisse Vianna

terça-feira, 27 de março de 2007

Fragmentos de uma viagem - Samuel I

Recife. Chego no hotel e meu celular toca. DJ Dolores quer me indicar um taxista que acabou de conhecer, um fã de Chico Science. Ligo pra Samuel, o taxista, que me traz um livro sobre seu ídolo. Um livro que eu não conhecia. Samuel faz questão de me emprestar. Ele nos leva pra dar uma volta pela cidade e conta de todo seu envolvimento com o Manguebeat. Me pergunta: quem te deu meu telefone foi Helder, não foi? Digo que sim. Ele então me diz que sabe que Helder é músico, mas não lembra de que banda. Me pergunta se é do Mestre Ambrosio. Digo pra ele que Helder é DJ Dolores. Ah, meu Deus, aquele é DJ Dolores? O homem veio no meu táxi e eu não sabia, e ele é famoso da porra!!

segunda-feira, 26 de março de 2007

Taí!

Taí dois conceitos para o que é Manguebeat! Na coluna “Escuta aqui”, de Álvaro Pereira Júnior, na Folha de São Paulo. Saiu no dia 05 de fevereiro.

EU NÃO gosto de mangue beat. Estou falando do som. Repetitivo, sem melodia, em geral mal-produzido. *

Mas gosto de mangue beat. E aí estou falando das idéias e da atitude. Do olhar amplo, voltado para o mundo, regional sem ser provinciano. Na sexta-feira passada fez dez anos da morte de Chico Science, fundador e líder da Nação Zumbi, até hoje na ativa.

No auge desse tipo de som, anos 90, eu não estava nem aí. Do Recife, eu só gostava dos Devotos do Ódio, justamente porque rejeitavam essa mistura com ritmos regionais ("Somos uma banda de hardcore!", diziam).

Meu "coming of age" foi nos anos 80, em que a esquerda stalinista, com forte presença na crítica cultural, valorizava a cultura nativa e a produção artística "de protesto". Minha repulsa a essas idéias já naquela época mofadas era total. Anos de leitura voraz dos textos de Paulo Francis só faziam reforçar meu desprezo pelo regionalismo.

Quando o mangue beat chegou, despachei-o imediatamente para o compartimento cerebral destinado à arte regionalista. Tentei escutar Nação Zumbi, mundo livre (na época era tudo em minúscula). Amigos diziam que eram vitais, contemporâneos. Mas eu não conseguia passar da segunda ou terceira faixa. Até hoje não consigo.

Se fechei os ouvidos à música, não deveria ter fechado os olhos às idéias. Chico Science, Fred 04 e outros sabiam do que estavam falando. Muito antes de a internet se popularizar no mundo, eles já vislumbravam um universo interconectado, de disseminação rapidíssima de idéias. Eram, na falta de palavra melhor, modernos, gente carregada de informações e de referências, vinda de longe dos supostos centros culturais brasileiros.


* Isso é uma opinião do Álvaro. Quanto a isso, só posso dizer, “cada um com seu cada um”

segunda-feira, 19 de março de 2007

E a tradição?


Dez anos após a morte de Chico Science ainda reverbera o mote que introduz “da lama ao caos”, o primeiro CD de Chico Science & Nação Zumbi: “Modernizar o passado é uma evolução musical.”
A consagrada mistura que o “alquimista dos sons” fez entre hip-hop e maracatu e revolucionou a música brasileira irritou Ariano Suassuna, o menestrel do Movimento Armorial. Nesse sentido, Renato L, diz que as diferenças entre o Mangue e o Movimento Armorial são intransponíveis:

A tentação de colocar numa espécie de solução em formol as manifestações populares nunca fez parte de nossos planos. Muito pelo contrário, a idéia era dar condições para que elas pudessem dialogar com o mundo contemporâneo, fertilizando-se no processo e assim voltando à vida. A homenagem que os maracatus prestaram à memória de Chico durante o seu velório foi a maior prova de reconhecimento desse trabalho.

A despeito dos queixumes de Ariano Suassuna, o fato é que foi a partir do sucesso de Chico Science que a batida do maracatu se espalhou pelo Brasil e pelo mundo. Hoje se tem grupos de maracatu no Rio, em Florianópolis e até em Nova York, para citar apenas três lugares. Como disse Mestre Valter, citado pela inglesa Nicki Dupuy, em pesquisa que ela efetuou sobre o Manguebeat:

Chico (Science) nos deu um grande suporte. Ele fez isto reemergir. Porque ele nos trouxe o povo. Ele trouxe adultos, jovens e crianças. Ele fez nosso ritmo, nossa cultura, nossa cor reemergir.

Então, isso significa que Mangue é a mistura entre o tradicional e o popular? Não parece ser tão simples assim. Cito aqui o que DJ Dolores afirma no documentário “ensolarado byte”:

Tem uma expressão que eu detesto que é o “mix da tradição com a modernidade. Como se tocar rabeca não fosse uma coisa contemporânea, não fosse uma coisa tão moderna como tu tocar um disco ou tocar um sampler. Esse tipo de oposição é irreal e acho que é meramente um estereotipo fácil, uma leitura muito fácil de uma possibilidade musical rica.

DJ Dolores contesta quando chamam seus shows de mix de tradição e modernidade, por ele tocar com seu laptop e suas máquinas dividindo o palco com a rabeca de Mestre Salustiano. Isso parece se aproximar mais do que a Cena Mangue propunha.

Seria essa a mistura entre tradição e modernidade presente no Mangue, na verdade uma não mistura, em que o supostamente tradicional não é visto como em oposição ao supostamente moderno? Não há dualidade, mas convivência?

Para saber mais sobre a polêmica entre o Ariano Suassuana e a Cena Mangue, leia a dissertação “O Encontro do Velho do Pastoril com Mateus na Manguetown ou As tradições populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Science”, de Anna Paula de Oliveira Mattos Silva, defendida pela PUC e vencedora do Prêmio Romero Britto.
Sobre a relação da Cena Mangue com o maracatu, há a dissertação “As Nações de Maracatu do Recife e o maracatu no Rio – algumas reflexões sobre tradição, ressignificação e mediação cultural”, de Aline Valentim de Albuquerque, defendida na UERJ.

quinta-feira, 15 de março de 2007

as perguntas

Um dia, meu amigo Helio me pediu para ler meu material de pesquisa. Ao mandar o meu texto de qualificação para ele, recebi a resposta:
"Menina Rejane... recebi o material, lerei com o maior prazer e atenção do mundo! Você não sabe e nem imagina como o Manguebeat mudou a minha vida! Um beijão!"
Algum tempo depois, fui apresentar minha pesquisa na Puc, num curso oferecido pela professora Santuza Cambraia Naves. Depois da aula, recebi o email de um aluno, Rafael Saldanha, que dizia:
"Durante a aula eu fui lembrando toda a minha adolescência através do Mangue..."

Fiquei muito feliz em receber essas mensagens. Porque assim como o Manguebeat faz parte das memórias de Helio e Rafael, também faz das minhas. Não é um tema de pesquisa distante. Pelo contrário. Lembro muito bem a primeira vez que ouvi Chico Science & Nação Zumbi, assim como o show que assisti no Circo Voador, com Chico vestido de Caboclo de Lança. E uma das coisas que me tem chamado atenção durante o percurso da minha pesquisa é a diversidade de entendimentos que se tem sobre o que é o Manguebeat. E o como esse entendimento está relacionado, é claro, à relação que cada um estabelece com o que é conhecido como Manguebeat.

Assim, duas perguntas são fundamentais para se entender a diversidade de significados relacionados ao Manguebeat:

"Qual sua primeira memória relacionada ao Manguebeat?"
"O que você entende por Manguebeat?"

A essas perguntas, muitas respostas. Aí vão algumas delas:

A minha memória mais forte é a do show do CSNZ no Geraes Rock Festival, em 1996, lá em Juiz de Fora. Eu tinha 14 anos e foi dos primeiros shows que eu vi... Inesquecível. Depois vi shows do Mundo Livre, da Nação... Mas não se compara àquele. Minha lembrança mais antiga relacionada é justamente como eu conheci o Manguebit: achei o "Da Lama ao Caos" num sebo por R$5,00. Pra minha sorte, alguém comprou, ouviu e não gostou. E assim meus paradigmas musicais foram mudados.

Pra mim, Manguebeat é o som de Recife do início dos anos 90, e as coisas influenciadas por ela. Esse som era marcado por uma liberdade de mistura (não necessariamente a fórmula Pop + Popular) e por um sentimento de afirmação de uma identidade sul-americana, brasileira, nordestina, pernambucana e recifense...

Rafael Saldanha

grupos artístico-musicais com uma proposta que distoava, graças a deus, dos ritmos existentes na época. além de agregar contestação social com o lirismo das letras e das músicas. Chico Science, claaaro.
Um movimento que busca agregar contestação social com o lirismo das letras e das músicas.

Ana Luiza de Abreu

Não sei muito sobre o movimento, mas esse nome me remete ao cantador Chico Since e a Nação Zumbi. Sei apenas que o manguebeat foi um movimento musical nascido no Recife, que mistura vários sons de percussão e guitarra.
Sei apenas que o manguebeat foi um movimento musical nascido no Recife, que mistura vários sons de percussão e guitarra.

Amanda Chamusca

Lembro que por volta de 1997 (se não me engano). Estava botando som num reveillon de amigos em Rio da Ostras, quando um deles me trouxe um Cd da Nação Zumbi (com Chico ainda, claro) e pediu para botar. A princípio todos torceram o nariz mas depois gostaram, Foi bem legal. Acho que neste mesmo ano fui a um show na Apoteose (Coke Reggae ou algo assim, e umas das bandas que abriram foi a Nação Zumbi) ainda era de dia e estava vazio, ninguém estava muito interessado no show,mas eu dancei à beça!
Manguebeat é um movimento musical, mas também social que resgata as raízes da música pernambucana, como côco e maracatu e mistura com guitarras e bases modernas. Muito bom! Teve origem na Viasat, Mundo Livre, Nação Zumbi, etc...

Rafael Andrade

Ainda continuo minha campanha na coleta de depoimentos. Comentários são todos bem vindos!!

segunda-feira, 12 de março de 2007

o filme

Minha inspiração para pensar na Cena Mangue como um filme veio dos textos escritos por Renato L.

Eu estava no Cantinho das Graças, um bar sem qualquer atrativo freqüentado pela galera. Na mesa acho que bebiam Mabuse[1], Fred[2], Vinicius Enter[3] e outros. De repente, Chico[4] apareceu e sem nem sentar foi anunciando “olha fiz uma jam session* com o pessoal do Lamento Negro e mesclei uma batida disso com uma batida daquilo e um baixo assim...vou chamar esse groove* de Mangue![5]

Sendo considerado o Ministro da Informação da Cena Mangue, o jornalista Renato L foi um dos seus principais idealizadores e articuladores. Seus textos se tornaram importantes fontes para minha pesquisa e sempre me inspiraram a visualizar as situações ali descritas. Depois de lê-los e relê-los diversas vezes, fiz aquela declaração à Clarisse. Na verdade, minha declaração foi feita de forma muito ingênua e não imaginava que pudesse ser realizada. Foi Clarisse quem me incentivou e me mostrou os caminhos a serem percorridos para a concretização. Juntas fizemos o projeto do documentário “A lama, a parabólica e a rede”.

O documentário se constrói como uma busca pelo Mangue, viagem rumo à sua descoberta. Saímos do Rio de Janeiro, passamos por São Paulo, indo em direção a Recife. Nosso ponto de partida tem uma razão fundamental: assumindo o lugar de onde fala, o filme parte das imagens do Mangue construídas no eixo Rio- São Paulo, divulgadas pelos veículos da grande mídia. São essas as idéias retorcidas e reviradas durante o percurso. Nossos entrevistados são alguns dos principais nomes dessa cena em suas diversas manifestações: músicos, jornalistas, cineastas, agitadores culturais e público.Nessa viagem, buscamos alguns significados do Mangue e do que levou a Cena Mangue a se configurar como Movimento Manguebeat.

Já realizamos a maior parte das filmagens, faltando apenas finalizar as gravações em São Paulo, devido a um acidente: a câmera quebrou e não conseguimos terminar as entrevistas marcadas para a capital paulistana. Mas essa é uma outra história.

[1] José Carlos Arcoverde, designer e produtor multimídia, espécie de “ministro da tecnologia” do Mangue
[2] Fred 04, codinome de Fred Montenegro,líder da banda mundo livre s.a.
[3] Codinome de Vinicius Vasconcelos, guitarrista
[4] Chico Science, codinome de Francisco França, líder da banda Chico Science & Nação Zumbi, morto em um acidente de carro em 1997
[5] L, Renato “Mangue Beat – Breve histórico do seu nascimento” In: Manguetronic (http://www.notitia.com.br/manguetronic/newstorm.notitia.apresentacao)

quinta-feira, 8 de março de 2007

a conversa

Foi em dezembro de 2005. Eu estava teclando com Clarisse, no MSN.

rejcal
[1] diz:
eu queria fazer um filme sobre o “manguebeat”... acho que daria um bom filme

a taturana peremptória
[2] diz:
porque você não faz?

a taturana peremptória diz:
Um documentário?

a taturana peremptória diz:
Sobre o mangue?

rejcal diz:
Um filme ...contando a história de como surgiu

rejcal diz:
Uns caras que ficavam bebendo cerveja

rejcal diz:
E a idéia foi surgindo

rejcal diz
Um dia deu um estalo

rejcal diz
E eles mudaram a cidade
...
a taturana peremptória diz:
Inclusive uma espécie de ma king off literário, sobre a sua tese
...
rejcal diz:
Sim, só preciso de câmeras

a taturana peremptória diz:
Uma câmera só

a taturana peremptória diz:
Uma câmera e alguém para operar
....
a taturana peremptória diz:
Sério, acho que seria legal

[1] meu nick
[2] nick de Clarisse

segunda-feira, 5 de março de 2007

Oh Josué!!


Há quem diga que a relação de Josué com a Cena Mangue é meramente incidental, não sendo uma influência de fato. O jornalista Jose Telles, em uma entrevista para essa pesquisa, revelou ter sido quem indicou a leitura de Josué de Castro para Chico Science, que teria lido apenas o romance escrito por Josué: "Homens e Caranguejos". Um aluno da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro me contou uma história de que Chico Science freqüentava a biblioteca para ler os livros de Josué e, voltando para casa, encontrou um mendigo pedindo comida no ponto de ônibus. Chico então tirou seu sanduíche da mochila, deu ao mendigo e bolou o famoso refrão: “Oh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça. Quanto mais msiéria tem, mais urubu ameaça”. Não sei como ele ficou sabendo dessa história. Ou talvez não tenha sabido mesmo. Só tenha inventado. É assim que nascem os mitos!

Verdade ou não, quem leu ou não leu Josué, não é mais significativo do que a escolha dele como referência para os mangueboys. Josué não apenas está presente como um interlocutor imaginário em algumas músicas de Chico Science, como sua influência pode ser lida nas entrelinhas de muitas outras músicas, não só da Nação Zumbi como de outras bandas. Assim como aparece nomeadamente no texto de “Caranguejos com Cérebro”, release escrito por Fred 04, em 1992, que se transformou no manifesto do Manguebeat:
"Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência. "

O certo é que a Cena Mangue extrapola essa conexão com o pensamento de Josué de Castro. E apesar de minha porta de entrada na pesquisa ter sido o autor de “Geografia da Fome”, essa se tornou uma porta dentre tantas que começaram a aparecer desde que iniciei meu doutorado. Nesse tempo, o Manguebeat tem se revelado para mim um tema diverso com uma incrível riqueza e generosidade de aspectos, da mesma forma que o mangue se revelou como um ambiente riquíssimo e diverso para os mangueboys. Assim, me dedico a fazer uma etnografia do Manguebeat, pensando na formação da Cena Mangue, na transformação da Cena em Movimento Manguebeat e nos reflexos disso atualmente. Oh, Josué que me ajude a fazer essa tese!


A quem interessar possa, existe uma dissertação que aborda a conexão entre a obra de Josué de Castro e as músicas de Chico Science, especialmente no que diz respeito aos mocambos de Recife. Se chama “Geografia e Literatura: decifrando a paisagem dos mocambos do Recife”, de Maria Amélia Vilanova Neta, defendida em 2005, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Mangue beat. Manguebeat. Manguebit.

O texto abaixo foi publicado na coluna do Silvio Meira no dia 02 de fevereiro, em homenagem aos 10 anos da morte de Chico Science (http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7421,00.html).

Mangue beat. Manguebeat. Manguebit.

O movimento mangue mudou a história da música e da expressão artística no Recife nos anos 90. E foi essencial na criação da atitude que resultou no Porto Digital, o sistema local de inovação de tecnologia de informação do Recife.

Dois de fevereiro é dia de Iemanjá. É meu aniversário, também. E foi num domingo, no dia em que Chico Science estava indo de Recife a Olinda, naquele fim de tarde de sol em 1997, pra ver a Cabralada tocar. Esperamos, esperamos, o maracatu era energia pura, a Treze de Maio lotada, mas Chico nunca chegou. Chico nunca chegou e, no fim da noite, eu estava no necrotério, com Sonaly Macedo, onde Chico tinha ido parar depois de um acidente inacreditável no Salgadinho. Foi o pior aniversário da minha vida.

O povo do mangue, nome de beat tão interessante quanto a batida propriamente dita, renovou a cena musical do Recife e de boa parte do Brasil como se fosse um big bang. Chico, 04, Mabuse, Renato L, Lúcio Maia e tantos outros teóricos e práticos do movimento botaram nossas vidas de ouvido pra baixo. A trilha de quase tudo, aqui, era de repente daqui mesmo e pra mim, que começava a entender o encanto de alfaias, abês e loas dos maracatus de baque virado, o beat do mangue era como se fosse meu. E não era só eu, muito mais gente tava na mesma onda, atitude, jeito de enxergar o mundo, de misturar as idéias, de achar que muito, muito mais era possível.

Dois anos antes daquela tarde de maracatu em Olinda, virei professor titular do Centro de Informática da UFPE, numa cerimônia tradicionalmente precedida por um conjunto de câmera executando Bach, Mozart e similares. Pois pra mim foi Júlio Glasner no som, detonando Computadores fazem Arte (artistas, como dizia Chico, fazem dinheiro) quando entrei no auditório e Da Lama ao Caos depois do discurso de posse e antes da cana que durou dois dias... Tudo de acordo com a letra: “...eu me organizando posso desorganizar/ ...eu desorganizando posso me organizar”.

Nosso lema na informática da UFPE era e ainda é Ciência & Gréia. Ou Competência com Irreverência. Dá no mesmo. No começo da década de 90 nós também estávamos achando que não só era preciso mudar, mas que era possível mudar. O caldo de cultura que se pensava, via e ouvia no delta do Capibaribe, principalmente depois que o movimento mangue começou a tormar forma e nós começamos a nos ver nele e como parte dele, era a base de onde muitos de nós tiramos idéias e energia para começar uma aventura de tecnologias da informação que continua sendo construída, como a mesma força de antes, até hoje. E que não dá sinais de voltar atrás.

Recife sempre teve empresas de software. Sempre, aqui, significa desde a década de 60, quando a maioria dos leitores não tinha nascido e eu ainda jogava bolinha de gude. E tinha empresas porque havia uma demanda regional sofisticada e capaz de sustentar empresas locais que viriam a ter caráter nacional décadas depois. Mas a globalização começou a pegar a periferia com todo seu poder de destruição e renovação, bem no tempo do movimento mangue, na década de 90. Foi o fim dos bancos locais e regionais, a falência das pequenas indústrias, o fim dos incentivos da Sudene. Enfim, o fim de muitos sonhos, planos e projetos.

E os acadêmicos de Recife tinham sonhos, planos de construir centros de ensino e pesquisa que contribuíssem para o crescimento da economia local, para a geração de emprego tecnológico, para a criação de novas empresas. Mas a globalização tirava nosso tapete a cada dia e os alunos que formávamos tomavam o rumo do Rio, São Paulo, Seattle e Londres. Foi aí, nesta mesma época, que o povo da tecnologia, tanto os mais novos quando os mais velhos do que Chico, resolveram mudar o jogo. Se Chico fazia para o mundo, por que não nós, também?

Se a economia local -- que demandava uma informática local -- estava desaparecendo em suas formas clássicas, porque não apostar em uma informática de classe mundial, feita aqui mas para o mundo, atraindo para cá problemas complexos e criando demandas locais que poderiam não só manter muitos dos nossos melhores cérebros aqui mas, ao mesmo tempo, atrair gente de fora pra cá, como tanta gente que estava sendo tragada pra Recife por causa, exatamente, do mangue beat? Se nosso mangue “bit” fizesse o mesmo, poderíamos, com o tempo -- quem sabe?- - tornarmo-nos muito mais relevantes...

A partir do começo dos anos 90, Recife atraiu o Softex (programa nacional de software), a RNP (Rede Nacional de Pesquisa), vários programas de pesquisa cooperativa em TICs nas universidades, as empresas de software se fortaleceram e aumentaram em número, suas associações se tornaram mais sólidas, o C.E.S.A.R (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife) apareceu, gerando (hoje) mais de 600 empregos em TICs e atuando diretamente na criação ou renovação de mais de trinta empreendimentos. Em 2000, o esforço desembocou no Porto Digital, sistema local de inovação situado no antigo bairro do Recife, o mesmo do Bar Fogão onde o povo do mangue bebia sempre.

O Fogão desapareceu. Mas cento e tantas empresas de software e de sua cadeia de valor vieram para o Porto Digital, trazendo mais de três mil pessoas que tornam vivo, de dia, o bairro que só existia à noite, quando os caranguejos com cérebro faziam uma festa em algum lugar.

O mangue não é mais o mesmo. A batida ideal que Chico procurava gerou muitas batidas possíveis, de Otto a Silvério a Cordel a Mombojó a Carfax, entre muitas outras. A busca de Chico fez renascer os maracatus, base de muitas de suas batidas, que estavam mais prá lá do que prá cá antes dele. Hoje há muitas dezenas de batuques ativos, formados depois que as alfaias -os pesados tambores de madeira do Nação Zumbi- ganharam o status dado pelo mangue. É como se um pedaço da África tivesse, de novo, desembarcado aqui, cheio de esperança, seus tambores embalados de alma e vida.

Para nós, de tecnologia, foi e é o mesmo. Aprendemos com Chico e o povo do mangue que é possível conceber, criar e fazer aqui. E levar tudo, pro mundo, a partir daqui. Estamos e vamos continuar fazendo isso. Com parabólicas e fibras óticas apontadas para o mundo, os pés no mangue, na periferia, na história da qual não podemos e não queremos fugir, fazemos do e no Recife o liquidificador de coisas ao qual nada é imune. Entra dia, sai ano, haverá alguém escrevendo um manifesto. Outro alguém atrás de mais uma batida ideal. Outros escrevendo software, gente fazendo design e interfaces, uns tantos testando, outros criando robôs, fazendo circuitos integrados, celulares, o que vier.

Ainda acho que não é uma boa idéia lembrar a morte pra comemorar vidas. Mas assim manda a tradição. Prefiro comemorar aniversários, como se estivéssemos todos vivos. Como Chico está. Na Cabralada, domingo passado, depois do ensaio, o batuque continuou tocando bases do CSNZ de 1994. Mas não é só: mais do que na música, o legado de Chico vive em todos os que lutam, nas suas muitas periferias, para fazer muito mais do que os poucos centros do mundo dizem que eles deveriam se limitar a fazer. Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi!...

quinta-feira, 1 de março de 2007

O início


Tudo começou com o Celso, eu queria estudar o Nordeste de Celso Furtado. Depois Gilberto chegou de mansinho e resolvi escrever sobre as concepções de Nordeste de Gilberto Freyre e Celso Furtado, seus contrastes e suas aproximações. Até que, num bizarro dia, eu estava num congresso, falando justamente sobre as agruras de se escolher um objeto de estudo, quando surgiu uma aparição: uma mulher toda de branco me cutucou. Ela me falou que eu deveria mesmo era estudar Josué de Castro.E depois sumiu.[1] Aí veio meu projeto megalomaníaco: escrever uma dissertação que contrastasse as concepções de Nordeste de Gilberto Freyre, Celso Furtado e Josué de Castro.
Mas, no momento da qualificação, entendi como uma banca pode acabar com nossos devaneios. Foi, a banca me chamou à terra, me mostrando que eu não cumpriria isso no curto período de um mestrado. Fiz, então, a dissertação "Conversas Nordestinas: Celso Furtado e Gilberto Freyre". Mas minha vontade de estudar Josué de Castro permaneceu. Eu estava decidida: o médico pernambucano seria o tema do meu doutorado.
Andando pela Travessa do Ouvidor, no Centro do Rio, entrei em uma livraria e me deparei com o livro "Josué de Castro e o Brasil". O comprei e li seus artigos à procura de inspiração para escrever meu projeto de doutorado. Entre eles, encontrei "Uma hermenêutica do ciclo do caranguejo", do médico Djalma Agripino de Mello Filho, que chamava a atenção para a conexão entre Josué de Castro e os mangueboys. Pronto, achei meu tema! Sendo fã das bandas Nação Zumbi e mundo livre s.a., consideradas o núcleo do chamado Manguebeat, pensei em unir o útil ao agradável. Minha idéia era analisar a atualização do pensamento de Josué de Castro proposta pelos mangueboys. E assim comecei minha pesquisa, chamada "Mangue: a lama, a parabólica e a rede".
[1] Depois descobri que era só uma professora que estava passando pela sala e resolveu entrar.